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Bolsonaro mandou Cid distribuir remédios de uso proibido no Brasil durante a pandemia da covid-19

Proxalutamida até hoje está em estudos e não teve sua aplicação autorizada em países de referência; defesas do ex-presidente e do tenente-coronel não quiseram se manifestar

Durante a pandemia da covid-19, o então presidente da República, Jair Bolsonaro, mandou o tenente-coronel Mauro Cid distribuir para aliados um medicamento de uso proibido no Brasil. O produto farmacêutico não tem registro na Anvisa e até hoje está apenas em fase de testes ao redor do mundo.
Dados extraídos pela Polícia Federal do telefone celular de Mauro Cid usado em 2021 mostram que o então ajudante de ordens da Presidência da República conseguiu obter uma carga desse medicamento e acertou diretamente com Jair Bolsonaro a entrega do remédio para diversos aliados. Procuradas, as defesas de Bolsonaro e de Cid não quiseram se manifestar sobre o assunto.
Tratava-se da proxalutamida, um anti-androgênio não-esteroidal produzido na China para testes no combate a determinados tipos de câncer. Em 2021, bolsonaristas começaram a defender, com base em informações falsas, o uso desse remédio para o combate à covid-19.
Até hoje a proxalutamida não é autorizada em órgãos de referência ao redor do mundo nem para o combate ao câncer, finalidade para a qual ela tem sido estudada. A substância não consta, por exemplo, como medicamento autorizado nos registros da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) ou de agências regulatórias de países-membros da União Europeia. Nos EUA, a autoridade americana, a FDA também não aprovou o uso da proxalutamida como medicamento.
A Anvisa chegou a autorizar a realização de estudos do uso do medicamento no tratamento da covid, mas a importação foi suspensa por causa da descoberta de irregularidades nesses estudos. Uma dessas irregularidades foi a importação de comprimidos em quantidade muito maior do que a autorizada nos estudos. O Ministério Público Federal abriu investigação na época sobre o caso e descobriu que essa importação em quantidade maior permitiu o desvio de cargas do medicamento. O inquérito sobre esse tema ainda está em andamento.
Os diálogos revelam, pela primeira vez, que Bolsonaro e Mauro Cid também estavam envolvidos na distribuição irregular desse medicamento.

Palavra final era de Bolsonaro: ‘Mande a proxalutamida’

Em 4 de junho de 2021, Cid enviou ao presidente uma notícia relatando que o pastor R. R. Soares estava internado com covid-19 e sugere o envio do medicamento. “Proxalutamida?!? Podemos levar amanhã. O senhor dando luz verde, está no Rio”, afirmou Cid. Bolsonaro apenas respondeu: “Aguarde”. As mensagens não deixam claro se o remédio foi de fato entregue. No dia 8 de junho, o pastor teve alta.
Em 13 de junho, Cid pede nova autorização para a entrega do medicamento. Nas mensagens enviadas por WhatsApp, ele não deixa claro quem seria o destinatário dessa vez. “Autorizado pela família! Posso mandar levar?”, perguntou a Bolsonaro. Mais tarde, Cid avisou que a entrega foi efetivada. “Missão cumprida!!! Medicamento!!!! Entregue à senhora Maria Luciana, esposa”, escreveu o tenente-coronel. Bolsonaro agradeceu: “Valeu”.
No dia 21 de junho, Cid enviou uma mensagem de áudio pedindo autorização para repassar o medicamento. Ouça o áudio.
Cid pede autorização de Bolsonaro para distribuir proxalutamida a amigo
“Um da minha turma, que é irmão da esposa do meu irmão, ele tá com corona entubado. Queria saber se eu podia mandar uma proxa pra ele tomar lá. Tem um voo hoje nove horas, que a gente pode mandar isso aí”, perguntou. “Mande a Proxalutamida”, respondeu o presidente da República.
Os diálogos fazem parte das provas sigilosas colhidas nas investigações da Polícia Federal contra eles, mas não foram objeto de investigação pela PF.
Investigadores ouvidos pela reportagem sob anonimato afirmam que, como se tratava de uma substância proibida no Brasil, a sua distribuição poderia caracterizar o crime do artigo 273 do Código Penal, que prevê uma pena de dez a quinze anos de reclusão para quem vende ou entrega medicamentos sem registro do órgão de vigilância sanitária competente.

Pazuello defendeu medicamento

operação também teve a participação do ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, atual deputado federal pelo PL-RJ. Procurado, ele não quis se manifestar.
No Brasil, a comercialização e o uso de medicamentos só é permitida quando o fármaco tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Questionada pelo Estadão, a agência explicou que “a comercialização ou entrega sem o registro ou sem outro tipo de autorização da Agência está irregular.”
Servidores da Anvisa ouvidos pelo Estadão dizem que não foram alvo de pressões para aprovação do medicamento, mas relatam que durante a pandemia, antes de obter a autorização inicial para realizar a pesquisa com a proxalutamida, o médico Flávio Cadegiani, responsável pela iniciativa, chegou a se reunir com a diretoria do órgão para defender o uso do medicamento.
Segundo fontes, a reunião foi “muito abstrata” e os diretores afirmaram que era necessária a apresentação de dados mais robustos e o envolvimento de uma instituição farmacêutica para dar andamento ao processo.
Os diálogos de Mauro Cid mostram que Pazuello defendeu junto a Bolsonaro o uso da proxalutamida como um medicamento de combate aos sintomas da covid-19. Na época dos diálogos, ele já havia sido demitido do cargo de ministro da Saúde, mas continuou atuando como conselheiro de Bolsonaro sobre o tema.
Em 8 de abril, Pazuello enviou a Cid uma mensagem de WhatsApp que deveria ser encaminhada ao presidente. “Fala PR. Acho que o sr. podia falar hoje na live sobre a Proxalutamida. O senhor abriria o assunto com uma fala ‘preparada’ e depois o Hélio entraria com as questões técnicas/científicas!! Tem muito político tentando aparecer e já estão tentando puxar o protagonismo para eles!!”, escreveu Pazuello.
Cid disse que iria verificar com o presidente. Horas depois, Pazuello enviou um texto dizendo que esse medicamento foi usado na crise do oxigênio em Manaus e teve bons resultados –sem ter nenhuma comprovação científica.
No dia seguinte, Pazuello e Cid trocam mensagens a respeito da obtenção de um pacote do medicamento. Pazuello perguntou: “E ae?”. Cid respondeu por áudio: “Em dez minutos vai estar comigo, general, o pacote”. Pazuello, também por áudio, pediu que Cid lhe telefonasse depois. “Quando você puder falar com calma, me ligue pra que a gente possa fazer um protocolo para o uso dessa medicação, tá bom? Vou te passar os contatos, etc, pra poder coordenar. Por favor, tô te esperando. Abraços”. Ouça os áudios:
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