Os sucessivos descumprimentos das medidas cautelares impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tendem a dificultar que ele consiga cumprir, no futuro, a pena do processo da trama golpista em regime de prisão domiciliar, segundo avaliação de juristas e especialistas em direito penal e constitucional.
Bolsonaro aguardava a conclusão do julgamento no STF já condenado a 27 anos e 3 meses, com previsão de início no regime fechado — mas aliados esperavam reverter a execução para o regime domiciliar, em função do estado de saúde do ex-presidente. Esse mesmo entendimento foi aplicado em 2023 no caso do ex-presidente Fernando Collor, que obteve prisão domiciliar humanitária.
Tentativa de violação da tornozeleira dificulta cenário
A situação, porém, ficou mais complexa após a PF registrar que Bolsonaro tentou abrir a tornozeleira eletrônica com um ferro de solda — fato confirmado pelo próprio ex-presidente durante audiência de custódia no domingo (23), quando alegou ter tido “paranoia” em razão de medicamentos.
Para o advogado e professor da USP Pierpaolo Bottini, a conduta compromete a confiança necessária para que a Justiça conceda o benefício de prisão domiciliar:
“Em regra, o dispositivo fiscaliza o cumprimento da domiciliar. Quando há indício de tentativa clara de violá-lo, isso prejudica a confiança de que a pessoa não vai sair de casa”, afirmou.
A professora de direito constitucional Damares Medina concorda e destaca que a defesa pode até usar a alegação de ausência de intenção de fuga como atenuante, mas a chance de sucesso é mínima:
“É muito difícil que um réu que reiteradamente descumpre medidas cautelares receba novamente o privilégio da prisão domiciliar.”
Negociações políticas e impacto jurídico
Há dois meses, integrantes do Centrão costuraram, de maneira reservada, um acordo com parte dos ministros do STF para que Bolsonaro cumprisse eventual pena em regime domiciliar, evitando debates sobre anistia. A tentativa de violação da tornozeleira, porém, tornou esse arranjo politicamente e juridicamente mais frágil.
Durante audiência de custódia, Bolsonaro admitiu que danificou o equipamento e negou qualquer plano de fuga. Ainda assim, sua prisão preventiva foi mantida.
Defesa mantém estratégia e fala em ‘narrativa’
Apesar das imagens e do relatório que apontam avarias no monitoramento eletrônico, o advogado de Bolsonaro, Paulo Cunha Bueno, rejeitou detalhar o episódio, afirmando que a tornozeleira está sendo usada como “narrativa para justificar o injustificável”.
Bolsonaro teve a domiciliar revogada em agosto, em outra investigação, após participar virtualmente de um ato político, violando proibição de uso de redes sociais. O STF entendeu que houve coação, obstrução de justiça e atentado à soberania nacional.
Prisão domiciliar ainda é possível, mas mais difícil
Segundo o criminalista Renato Vieira, doutor em direito processual penal pela USP, a violação da tornozeleira não impede uma análise futura de prisão domiciliar — mas é um fator negativo na avaliação judicial:
“Quando estiver cumprindo pena definitiva, será um outro momento. A tentativa de violação pode ser considerada, mas não impede a reavaliação.”
Ainda assim, especialistas afirmam que, para Bolsonaro obter a domiciliar humanitária, teria de comprovar agravamento severo de saúde, risco de morte ou incapacidade total de permanecer em uma unidade prisional.
O que prevê a Lei de Execução Penal?
A LEP permite prisão domiciliar apenas em casos específicos, para quem está em regime aberto, como:
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Condenados maiores de 70 anos;
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Pessoas acometidas de doença grave;
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Gestantes;
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Mães com filhos menores ou com deficiência.
Em caráter excepcional, o STF pode autorizar a medida por razões humanitárias, como ocorreu com Collor.
Possibilidade de internação hospitalar
A professora Damares Medina também aponta a alternativa de cumprimento da pena em unidade hospitalar, com custos arcados pela própria família — solução usada em casos raros envolvendo agravamento clínico.
Já o professor de direito penal Thiago Bottino, da FGV, entende que apenas risco real à vida poderia justificar a transferência:
“Se não houver condições de mantê-lo no presídio sem risco de morte, o juiz pode converter para domiciliar. Fora dessa hipótese, não há justificativa.”

