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“O SHOW DE JAIR” Como o PT enfrentou a milícia digital bolsonarista: Por Breno Pires

Quando tomou o voo de Portugal para o Brasil, o casal Fernanda Sarkis e Marcus Nogueira trazia uma bagagem preciosa. Brasileiros, ela mestre em comunicação política pela Universidade do Porto e ele sociólogo, Sarkis e Nogueira haviam feito um mapeamento da extrema direita portuguesa no universo digital que ajudou o Partido Socialista a conquistar uma inesperada maioria nas eleições legislativas do início do ano. Enquanto cruzavam o Atlântico, no mês de fevereiro, a campanha no Brasil estava longe de começar, mas o PT já andava às tontas com um desafio enorme: como enfrentar a milícia digital de Jair Bolsonaro, que se provou tão eficaz na eleição de 2018? Baseados na experiência em Portugal, Sarkis e Nogueira achavam que tinham a resposta.

Em Brasília, o casal começou a participar de discussões sobre o funcionamento da extrema direita. Trocaram ideias com líderes de alguns partidos, mas estavam mais interessados no PT por achar que a candidatura de Lula era a única capaz de enfrentar Bolsonaro com sucesso. De início, o núcleo político petista ficou na dúvida sobre como a abordagem do casal poderia ser útil na comunicação do partido e na  ação política. Mas as conversas prosseguiram até que houve uma reunião com o advogado Angelo Ferraro, ex-assessor jurídico do governo de Dilma Rousseff e sócio de Eugênio Aragão, que ocupou o cargo de ministro da Justiça nas vésperas do impeachment da petista. Ferraro e Aragão operaram a área jurídica da campanha presidencial de Fernando Haddad em 2018 e estavam escalados para exercer a mesma função na campanha de Lula. Associados ao escritório de Cristiano Zanin, o advogado que tomou conta dos processos de Lula na Lava Jato, eles queriam abrir uma trincheira jurídica contra a milícia digital bolsonarista.

No encontro, realizado no escritório de Ferraro e Aragão, os advogados logo captaram o potencial do trabalho de Sarkis e Nogueira. Perceberam que a pesquisa digital poderia ser um elemento central nas ações jurídicas, capaz de deter o avanço do bolsonarismo nas redes sociais. Sarkis e Nogueira explicaram que adotam o conceito de “cartografia da controvérsia”, cuja base está na Teoria Ator-Rede, do pensador francês Bruno Latour, recentemente falecido. Na pesquisa em Portugal, o casal incorporou a ideia de que, para compreender bem um ator, é preciso analisar seu comportamento em rede. A partir dessa premissa, construíram extensos mapas de interação de atores da extrema direita portuguesa, decodificando como, por meio das redes, eles amplificavam seu discurso e suas mensagens.

la diante de uma plateia politicamente disponível. São desinformações, baseadas em interpretações subjetivas, manipuladas de modo que pareçam objetivas.

Apesar do linguajar algo obscuro, os advogados entenderam a importância da proposta para a atuação jurídica e contrataram o casal por conta própria. Assim começou um trabalho que, fundindo pesquisa digital com argumento jurídico, pela primeira vez conseguiu neutralizar parcialmente a milícia digital bolsonarista.

 

Corria o feriado de 1º de maio quando os pesquisadores começaram a mapear e monitorar a rede de interação de um único ator numa única plataforma: o Twitter do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Nessa primeira etapa, o trabalho durou até 21 de maio. (Na segunda etapa, estendeu-se de 15 de agosto a 30 de setembro.) Os pesquisadores constataram que Carlos Bolsonaro comentava posts de outros atores, mas a grande maioria de suas intervenções – 78% – era sempre sobre postagens de um universo de quarenta perfis.

Ao mapear a rede de Carlos Bolsonaro, que hoje tem 3,2 milhões de seguidores no Twitter, os pesquisadores começaram a descrever a estrutura e a forma de atuação da milícia da desinformação do presidente. Os dados coletados eram remetidos à área jurídica da campanha do PT, que acionava o Tribunal Superior Eleitoral (tse), pedindo a remoção das postagens de fake news. Em toda a campanha, a equipe petista conseguiu 75 decisões judiciais para remover postagens, sempre por desinformação.

Aos poucos, os pesquisadores foram documentando o caráter reiterado na publicação de desinformação dos atores que se relacionavam com Carlos Bolsonaro no Twitter. Em outras palavras, a pesquisa estava, paulatinamente, demonstrando a existência e o funcionamento do “ecossistema de desinformação”, que, ao todo, reunia 81 perfis nas redes sociais. Entre eles, estavam os três filhos de Bolsonaro e um punhado de parlamentares, como Carla Zambelli (PL-SP),  Bia Kicis (PL-DF) e Ricardo Salles (PL-SP), o ex-ministro que vai estrear uma cadeira na Câmara dos Deputados, além de apoiadores do presidente. O levantamento do PT mostrou que a milícia não atuou de forma espontânea – ou “orgânica”, como se diz no jargão digital – mas sim de maneira coordenada com o objetivo de produzir e espalhar desinformação para influenciar o resultado da eleição de 2022.

O estudo do PT mostra que o “ecossistema da desinformação” de Bolsonaro operava em quatro eixos temáticos: “violência e criminalidade”, “religião e costumes”, “descredibilização do sistema eleitoral” e, por fim, “agenda socioeconômica”. Nenhum deles estava voltado à formulação de propostas, mas em organizar acusações – frequentemente mentirosas – contra os adversários, sobretudo Lula. Cada perfil podia tratar de qualquer eixo temático a qualquer tempo, impulsionando nas redes a fake news do dia que, em alguns casos, podia durar semanas ou mais.

A lorota de que Lula perseguiria cristãos, imitando o que se passa na Nicarágua do seu aliado político Daniel Ortega, foi um desses casos duradouros. Entre julho e setembro, 42 perfis da rede de interação de Carlos Bolsonaro publicaram 238 conteúdos sobre o assunto. Foi num crescendo: 5 em julho, 76 em agosto e 162 em setembro. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) entrou na roda em 12 de julho. De início, com insinuações indiretas. Em 19 de agosto, subiu o tom. “Lula e o PT apoiam invasões de igrejas e perseguição de cristãos.” Como o assunto crescia, Jair Bolsonaro apareceu na entrevista que deu ao Jornal Nacional em 22 de agosto com uma palavra escrita a caneta na palma da mão: “Nicarágua.” Era uma senha para impulsionar o assunto.

Um dos melhores exemplos da atuação da milícia digital bolsonarista partiu do eixo “violência e criminalidade”, que tentou vincular Lula ao PCC, a maior organização criminosa em atividade no Brasil, e ao assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel, ocorrido em 2002. Na rede de interação de Carlos Bolsonaro no Twitter, 47 perfis publicaram 763 tuítes sobre os dois assuntos, entre 3 de maio e 10 de outubro, com destaque para três perfis: @ViLiMiGu_Tex e @ruirapina3, cujos autores não se identificam, e @kimpaim, que pertence a Kim Paim, influente youtuber que apresenta programas com dossiês sobre temas de interesse da agenda bolsonarista, quase sempre repletos de desinformação. Figura central na rede de Carlos Bolsonaro, Paim publicou uma sequência de quatro vídeos, de uma hora cada um, entre os dias 2 e 5 de julho, estabelecendo a tal ligação Lula- PCC. Uma de suas fontes era o perfil @ViLiMiGu_Tex. Carlos Bolsonaro recomendou tanto o vídeo de Paim quanto os tuítes de ViLiMiGu: “Vale a pena conferir a thread!”

A sequência é didática sobre o funcionamento do “ecossistema da desinformação”: perfis anônimos lançam a fake news, que é amplificada por influenciadores e endossada pela família Bolsonaro. Mas foi justamente as lorotas sobre Lula-PCC e a morte de Celso Daniel que marcaram o início dos problemas para a milícia bolsonarista. Com as mentiras bombando nas redes – só em julho, a milícia bolsonarista postou 434 tuítes sobre o assunto –, o PT entrou com a representação eleitoral 0600543-76.2022. Foi o começo de uma mudança importante.

Na representação, o partido pediu a remoção de publicações mentirosas sobre quatro temas: a suposta ligação de Lula com o PCC e a morte de Celso Daniel, a associação do petista ao fascismo e ao nazismo e, por último, uma declaração manipulada de Lula, de modo a parecer que ele dissera que usava “pobre como se fosse papel higiênico”. Na noite de domingo, 17 de julho, durante o plantão de recesso do Judiciário, o ministro Alexandre de Moraes acatou o pedido e mandou remover as publicações de seis redes – Twitter, TikTok, YouTube, Instagram, Facebook e Kwai. A decisão atingiu posts do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e dos deputados bolsonaristas Otoni de Paula (MDB-RJ), Hélio Lopes (PL-RJ) e Carla Zambelli, bem como de outros apoiadores e até administradores de sites e canais no YouTube.

Em sua decisão, o ministro Alexandre de Moraes aceitou um critério proposto pelo jurídico do PT: derrubar conteúdos que já tivessem sido apontados como falsos ou enganosos pelas agências de checagem. As publicações atingidas pela decisão daquele 17 de julho ou eram mentiras evidentes já descartadas pela própria Justiça, ou já haviam sido desmentidas pelas agências. Em sua decisão, Moraes, então vice-presidente do TSE, recorreu a uma retórica inflamada, crivada de pontos de exclamação:

Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão!

Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias!

Liberdade de expressão não é Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos!

Aparentemente, o ministro Moraes enamorou-se do seu pronunciamento e voltou a usá-lo, tal e qual, em outras decisões no período eleitoral. Em outubro, por exemplo, mandou excluir publicações segundo as quais Lula iria instituir o uso de banheiro unissex para as crianças nas escolas – uma das mentiras que mais impressionaram um segmento dos eleitores evangélicos. Um dos tuítes com a fake news era do presidente Bolsonaro. E, na ordem para suspender o conteúdo falso, lá foi Moraes com seus pontos de exclamação:

Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão!

Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias!

Liberdade de expressão não é Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos!

Consolidada a tendência de seguir as agências de checagem para definir conteúdos falsos, a coligação liderada pelo PT passou a concentrar seus pedidos em temas já analisados pelos checadores profissionais. A decisão de Moraes teve um impacto imediato. O volume geral de postagens no Twitter caiu cerca de 30%, segundo levantamento da Pública, uma agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos. Até no Telegram, rede que não fora atingida pela remoção de conteúdos porque não constava da representação, a quantidade de mensagens relacionando PT e PCC desabou 56,8%.

Para quem desconhece o funcionamento da milícia digital bolsonarista, uma decisão da Justiça Eleitoral carimbando um conteúdo como falso pode parecer apenas isso: um conteúdo falso suspenso do perfil de determinado usuário. Na prática, é muito mais. A Justiça derruba um capítulo (ou um conjunto de capítulos) que compõe a grande narrativa da rede de desinformação, desarticulando parcialmente o discurso digital. No mundo analógico, é como se uma publicação, que normalmente é distribuída de graça nos pontos de ônibus e estações de metrô, deixasse de ser entregue aos passageiros por seu conteúdo mentiroso. Só que essa publicação – eis aí a diferença brutal – era distribuída em milhares de pontos de ônibus e metrô para milhões de pessoas em questão de segundos.

Essa é a rede que uma decisão judicial derruba.

O PT criou uma estrutura para a guerra digital. Em São Paulo, conforme contou a repórter Consuelo Dieguez em reportagem no site da piauí, instalou-se uma sala com cinquenta monitores cobrindo uma parede inteira – ali se acompanhava, minuto a minuto, o que a milícia bolsonarista estava disseminando. Em agosto, por meio do advogado Cristiano Zanin, a equipe paulista ganhou a adesão de Marcos Aurélio Carvalho, estrategista em marketing digital que trabalhara na campanha digital de Bolsonaro em 2018 – da qual foi defenestrado em razão do ciúme de Carlos Bolsonaro. Carvalho conhecia o adversário por dentro.

Em Brasília, onde ficavam Sarkis e Nogueira, monitorava-se o “ecossistema de desinformação” como um todo, que passou a ser jocosamente chamado de “o show de Jair”, numa alusão ao filme O Show de Truman, de 1998, em que o personagem principal vive – sem saber – numa redoma em que, na aparência, tudo transcorre com espontânea naturalidade, mas, na verdade, todas as interações são programadas. Quando publicações com fake news começavam a ser impulsionadas na rede de Carlos Bolsonaro, os pesquisadores alertavam: “Começou a rodar o show de Jair.”

A vantagem de analisar o “ecossistema” como um todo era viabilizar um contra-ataque estratégico. Na campanha, o PT recebia centenas, às vezes milhares, de mensagens de militantes denunciando fake news. Era impossível trabalhar caso a caso. Com a abordagem estratégica, que identificava cirurgicamente os pontos nevrálgicos, a equipe digital ajudou a qualificar as ações dos advogados da campanha – “nossos obuses judiciais”, nas palavras de Eugênio Aragão. Afinal, tal como no filme de 1998, o show de Jair de 2022 também contava com uma equipe encarregada de produzir e promover o espetáculo.

Kim Paim, o youtuber dos dossiês, é um dos nomes de destaque. Paim é engenheiro, vive na Austrália e tem 700 mil inscritos em seu canal no YouTube, no qual apresenta programas diários de uma hora de duração. O presidente Bolsonaro já promoveu conteúdos de Paim. Seus vídeos costumam reproduzir conteúdos de perfis do “ecossistema de desinformação”, como “Família Direita Brasil” e “Demagogia do Oprimido”, além de pessoas físicas como Carlos Bolsonaro e outros militantes bolsonaristas, como Elisa Brom, Iara GB, Rafael Balboa e Luiz Paulo (LP).

Outro megafone no show de Jair é o empresário Leandro Ruschel, membro do conselho da Brasil Paralelo, a mais ativa plataforma de streaming da extrema direita. Ruschel é um dos principais spin doctors. Sua especialidade é tentar vincular a esquerda ao crime, qualquer crime – do narcotráfico ao terrorismo. “TODOS os movimentos ligados à esquerda apresentam uma estreita ligação com o crime”, escreveu no dia 2 de julho em seu Twitter, onde tem 900 mil seguidores. (A postagem foi excluída.) Na campanha, Ruschel foi alvo de cinco decisões judiciais, todas suspendendo a veiculação de conteúdo falso ou distorcido.

Uma terceira fonte de referência é Bernardo Küster, que se apresenta como diretor de opinião do Brasil Sem Medo, um blog bastante ativo da direita extremista. Küster tem também um canal no YouTube, que beira 1 milhão de inscritos. O Brasil Sem Medo – ou BSM, para os íntimos – foi fonte inaugural de um dos exemplos mais completos da atuação da milícia digital do bolsonarismo. Tudo aconteceu no dia 16 de setembro, uma sexta-feira.

* Às 9h57 da manhã, o BSM noticiou que acabara de confirmar a autenticidade um áudio antigo de Lula, no qual o petista teria dito que “ninguém teve a competência e a coragem de acabar com esse cara”, supostamente reclamando que o ex-ministro Antonio Palocci ainda não tinha sido assassinado.

* Às 10h10, o diretor executivo do Brasil sem Medo, Silvio Grimaldo, fez um tuíte afirmando: “O BSM recebeu o laudo de uma perita criminal aposentada da PF com vinte anos de experiência. A análise técnica é enfática: a voz é do Lula.” Sua postagem – que está no ar até hoje – já rendeu 2 230 retuítes.

* Às 10h28, Küster entrou no show com o seguinte tuíte: “Exclusivo: Perícia confirma autenticidade de gravação de 2017 em que o ex-presidente comenta acusações de Antonio Palocci.”

* Às 11h41, o youtuber Gustavo Gayer, outro membro ativo do “ecossistema da desinformação”, correu para Telegram e o YouTube, onde postou um vídeo: “URGENTE – ACABOU PRO LULA! Áudio analisado por perita confirma ser a voz do lula.” Era, segundo ele, a prova de “que não só Lula é corrupto, mas também, aparentemente, de acordo com a análise do áudio, é também mandante de crimes”.

* Às 12h11, Gayer compartilhou o link do Twitter, repetindo, mais uma vez em maiúsculas: “acabou pro lula!”

* Às 12h35, o Terra Brasil Notícias, site cujo mote noticioso é “Deus acima de tudo e de todos”, reproduziu a notícia do BSM no seu Twitter.

* Às 16h36, Eduardo Bolsonaro, que já tinha entrado no assunto, tuitou: “O PT não é um partido, é uma máfia. O ex-presidiário é o gângster da facção.”

* Às 18h21, a deputada Bia Kicis, publicou: “Bomba! Perícia da polícia garante que áudio de conversa de Lula é autêntico. […] Esse criminoso não pode concorrer à Presidência.”

* Às 20h56, Carlos Bolsonaro endossou a história em seu Twitter: “É fato e o áudio mais que sacramenta: o único objetivo do descondenado é fazer todos pagarem e isto inclui você!”

* Às 21h46, “Embaixada Resistência”, outro perfil da extrema direita, postou um trecho do laudo técnico pericial e fez um desafio: “Refutem a perícia, militantes de redação!”

O vídeo de Gayer viralizou. Em 24 horas no ar, já tinha quase 600 mil visualizações. O tal laudo da perita da Polícia Federal era uma enganação. Sabe-se que o áudio é falso desde 2017, quando as agências de checagem constataram que a voz era de um imitador. A coligação do PT pediu a remoção do conteúdo no dia seguinte, em 17 de setembro, demonstrando que os checadores já haviam declarado a falsidade do áudio havia pelo menos cinco anos. Nove dias depois, em 26 de setembro, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do caso no TSE, mandou derrubar os links mentirosos. Em 3 de outubro, um dia depois do primeiro turno, o TSE referendou em plenário a decisão de Sanseverino. Mas, até o fechamento desta reportagem, a decisão ainda era descumprida pelo BSM, em cujo site estavam disponíveis a reportagem e o áudio mentirosos.

 

Com todos os dados reunidos, o PT bateu na porta do TSE em pleno domingo, 16 de outubro. Doze advogados, todos vinculados aos escritórios de Cristiano Zanin e Eugênio Aragão, assinavam uma peça jurídica com 245 páginas. Denunciavam – com dados, fatos, evidências – que a rede bolsonarista tinha uma coordenação na disseminação de fake news contra o processo eleitoral. O instrumento jurídico chama-se Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije).

A Aije acusa os integrantes do “ecossistema de desinformação” de quatro violações: crime eleitoral, abuso de poder econômico, abuso de meios de comunicação e abuso de poder político. Neste último caso, a ação foca na conduta dos investigados que, com mandato eletivo, atuam para “plantar uma ruptura de poderes, numa escalada autocrata de eliminação do instrumento mais essencial do estado democrático de direito: o sistema eleitoral e o voto direto”. Neste ponto, o alvo é Bolsonaro. Se condenado, ficará inelegível por oito anos.

No caso do abuso de poder econômico, a ação pede que o TSE investigue o financiamento das produções audiovisuais e o impulsionamento dos conteúdos da rede bolsonarista. O alvo, aqui, são onze pessoas, entre elas os donos da Brasil Paralelo e dos canais Folha Política (Ernani Fernandes e Thais Raposo do Amaral) e Foco do Brasil (Anderson Rossi), além dos youtubers do esquema (como Kim Paim e Gustavo Gayer) e dos empresários Otávio Oscar Fakhoury, um bolsonarista já investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) por financiar milícias digitais, e José Pinheiro Tolentino Filho, dono do Jornal da Cidade OnLine, um site de opinião e notícias pró-Bolsonaro. O julgamento da Aije não tem data para acontecer. Pode levar seis meses ou três anos, mas, enquanto não for julgada, ficará pairando como uma ameaça sobre a cabeça dos envolvidos, incluindo Bolsonaro.

Quais as chances de sucesso da Aije? A advogada Marilda Silveira, doutora em direito administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais e ex-assessora jurídica de ministro do TSE, diz que é cedo para avaliar a consistência da ação, pois ainda não se encerraram as etapas de instrução e contraditório. Ela lembrou, no entanto, que o TSE passou a admitir que as mídias digitais sejam consideradas nos mesmos termos que a mídia tradicional, o que aumenta a chance de sucesso da ação no quesito “uso indevido de meios de comunicação”.

O advogado Marcelo Weick, professor da Universidade Federal da Paraíba, leu a íntegra da ação. “É uma das ações mais bem-postas na questão do enfrentamento desse ecossistema massivo de desinformação.” Ele diz que as Aijes anteriores – nos casos Dilma-Temer, por caixa dois, e Bolsonaro-Mourão, pelo disparo em massa de mensagens via WhatsApp – careciam de um conjunto robusto de evidências, mas acha que, no caso atual, é possível entregar provas ampliadas. “Mesmo depois das eleições, você está tendo atos antidemocráticos, suspensão de perfis, bloqueio de contas. Então, se o TSE entender que tem uma concatenação, que é um ecossistema interligado, com financiamento oculto, estará caracterizado o uso indevido dos meios de comunicação e o abuso de poder econômico.”

Samara Castro, advogada com atuação em direito digital e eleitoral, também avalia que a Aije está bem calçada. “Ela pode ser totalmente comprovada. Seja pedindo que as plataformas confirmem as informações alegadas na inicial, seja pela própria confirmação de prova que a inicial traz”, disse. Castro acha que a ação de agora é superior à de 2018, movida contra a chapa Bolsonaro-Mourão. “Na época, você não conseguia fazer provas porque nem mesmo o WhatsApp conseguia nos ajudar por conta da criptografia.”

A advogada observa que, ao denunciar uma rede composta por 81 perfis, a ação pode ter tramitação lenta, mas entende que, desta vez, o próprio tribunal estará sob escrutínio. “Seria uma desmoralização para a Justiça Eleitoral não punir a desinformação”, diz. Sua opinião está baseada no fato de que o TSE criou resoluções específicas para atacar as mentiras nas redes sociais e fez todo um trabalho baseado nessa diretriz. “É preciso que os candidatos de 2024 tenham medo. E isso só é possível se houver punição, uma cassação ou inelegibilidade.”

De fato, o TSE se empenhou nesse combate. Ainda durante a presidência do ministro Edson Fachin, o tribunal marcou reuniões com todos os partidos representados no Congresso. Nesses encontros, que contaram com a presença de presidentes e vices das siglas e de seus advogados, Fachin anunciava que o combate à desinformação era prioridade. Alexandre de Moraes, então vice-presidente do tribunal, alertava os dirigentes partidários de que as ações judiciais que eventualmente viessem a ser apresentadas precisavam estar bem embasadas. Numa ocasião, segundo uma fonte que testemunhou a reunião, Moraes disse que os partidos deveriam “contratar meia dúzia de moleques que sabem mexer com computador” para coletar dados capazes de dar estofo às ações.

O tempo dirá se a Aije do PT chegou lá. Mas a empreitada jurídica pode ganhar um aliado importante. O grupo Sleeping Giants, que atua contra desinformação e discurso de ódio nas redes sociais, vai pedir para participar da ação na condição de “amigo da corte”. Se o pedido for aceito pelo TSE, o grupo pretende apresentar monitoramentos detalhados do debate nas redes sociais que demonstram a capilaridade e o impacto dos ataques ao sistema eleitoral, às urnas e à integridade das eleições.

A principal preocupação do Sleeping Giants, segundo consta na minuta da petição a ser apresentada ao TSE, é com o impacto da “ampla rede de desinformação que se profissionalizou em criar discursos diretos e indiretos capazes de despertar a animosidade da população com relação à legitimidade dos resultados obtidos da apuração das urnas eletrônicas”. O grupo monitorou a disseminação do discurso de ódio e de desinformação entre candidatos a deputado federal. Concluiu que tais discursos se intensificaram no segundo turno da campanha presidencial. Entre seus expoentes, há bolsonaristas eleitos neste ano, como Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro, Nikolas Ferreira, Gustavo Gayer, Bia Kicis e Ricardo Salles.

Além da Aije, o PT planeja apresentar outras duas ações. Quer uma investigação sobre “compra institucionalizada de votos”, uma referência à inclusão de mais de 500 mil novos beneficiários do Auxílio Brasil em pleno período eleitoral, bem como a distribuição de auxílio a taxistas e caminhoneiros, além da abertura de crédito excepcional pela Caixa. A outra ação diz respeito aos ataques de Bolsonaro contra as instituições democráticas e o sistema eleitoral, que atentam contra o regime democrático.

 

Ainda que o “ecossistema de desinformação” tenha continuado ativo na campanha, a milícia digital bolsonarista sentiu o golpe antes e durante a campanha. Com a estratégia digital e jurídica, o PT incomodou algumas das vozes mais influentes do show do Jair. “Stálin apagava pessoas de fotos e reescrevia a história. Hoje, tribunais apagam posts”, postou Eduardo Bolsonaro no Twitter, quando o TSE mandou as redes sociais apagarem posts sobre o “kit gay”, fake news que marcou a eleição de 2018.

“Essa campanha percesecutória [sic] do PT contra influenciadores de direita não tem como objetivo apenas nos censurar, mas também produzir um ambiente de medo, evitando a manifestação das pessoas sobre o ex-presidiário. É assim que seus ditadores amigos na Venezuela e Nicarágua operam”, tuitou Leandro Ruschel em 11 de outubro, entre o primeiro o segundo turno. O comentário foi apagado mais tarde.

Bernardo Küster, num tuíte do início de setembro, deixou claro que a estratégia do PT acertara na mosca e relacionou os temas com os quais o bolsonarismo queria trabalhar: “TSE faz de tudo para diminuir os feitos de Bolsonaro e evitar que brasileiros associem Lula/PT à corrupção, PCC, ditadura na Nicarágua, perseguição aos cristãos, comunismo, aborto, invasão de terra, aumento de impostos e do poder estatal, narcotráfico, desarmamento e censura.” O post apareceu em sua conta alternativa no Twitter porque a conta principal estava – e assim continua – bloqueada por decisão judicial.

Um tuiteiro contumaz da direita, Geovane Moraes, que se identifica como professor de direito penal, fez um tuíte no início de setembro em que já mostrava o resultado do trabalho jurídico dos petistas. “Os parlamentares de direita preferiram investir em # e mitar nas redes. O PT montou uma força-tarefa de advogados nunca antes vista. Resultado: os candidatos da direita estão desprotegidos juridicamente e apanhando todo dia”, escreveu, em tom de reclamação. “Pessoas como a Dra. @flferronato cansaram de avisar”, concluiu, referindo-se à advogada bolsonarista Flavia Ferronato, uma spin doctor da rede.

Em um relatório sobre o mapeamento do “ecossistema da desinformação” da extrema direita, os pesquisadores Fernanda Sarkis e Marcus Nogueira comentam a reação dos bolsonaristas ao trabalho jurídico do PT. “Esse papel não passa despercebido pela rede bolsonarista, que compreende que há duas formas de disputar a ocupação de espaço de uma narrativa, nas ‘hashtags’ e nos ‘tribunais’”.

A disputa nos tribunais explica por que o ministro Alexandre de Moraes, na condição de presidente do TSE, tornou-se alvo predileto dos bolsonaristas. Em uma de suas ações mais drásticas para combater as fake news, Moraes fez uma resolução que ampliava bastante os poderes do tribunal. Com a resolução, editada em 20 de outubro, os ministros passaram a poder barrar a divulgação de conteúdo falso por conta própria, sem a necessidade de serem acionados por alguém que se sinta prejudicado. A Procuradoria-Geral da República moveu uma ação contra a resolução por considerá-la inconstitucional. O STF rejeitou-a por 9 votos a 2, mas não afastou por completo as acusações de que Moraes e o próprio tribunal estavam indo longe demais, aproximando-se perigosamente da censura.

Agora, com grupos bolsonaristas se insurgindo contra o resultado das eleições e adotando a pregação golpista, a resolução está sendo útil. Até o fechamento desta reportagem, foram derrubados os perfis de seis deputados – quatro no exercício do mandato e dois recém-eleitos. Não se sabe a fundamentação exata, pois as decisões de Alexandre de Moraes estão sob sigilo. Um dos eleitos, Gustavo Gayer, ignorou a decisão, abriu uma nova conta no dia 7 de novembro e, duas semanas depois, quando já reunia mais de 250 mil seguidores, voltou a ser banido.

Alexandre de Moraes não se intimida com as críticas. No dia 14 de novembro, em evento empresarial em Nova York, fez um discurso claro sobre esse sistema de desinformação nas redes sociais e não se furtou a mencionar indiretamente as acusações de censura. “Sob o falso manto de liberdade sem limites, o que se pretende é corroer a democracia”, disse. Também afirmou que “a democracia foi atacada no Brasil, mas sobreviveu”. Para ele, a atuação do Judiciário no processo eleitoral representou “barreira para qualquer ataque à democracia e à liberdade”.

Tudo considerado, a professora Rose Marie Santini, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acha que acionar a via judicial para combater a desinformação bolsonarista foi “fundamental para dar um limite”. Em 2018, não houve nada parecido. Santini, que é também diretora do NetLab, organização que colaborou com o TSE nesta eleição, destaca que, agora, havia duas máquinas para enfrentar: a do Estado, sob o comando de Bolsonaro, e a das fake news de sua milícia digital. “A do Estado não tinha como enfrentar. Mas conseguiram enfrentar a da desinformação. Acho que a oposição foi bem-sucedida, e a prova disso é que ganhou a eleição”, diz ela, ao advertir: “Eles foram derrotados, mas estão muito vivos.”