Por que Fux condenou centenas de pessoas por invasões do 8 de janeiro, mas absolveu Bolsonaro

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux surpreendeu em seu voto no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais sete ex-integrantes de seu governo.

Conhecido por ser duro em ações penais e perfil considerado “punitivista”, ele votou para que o processo seja anulado e absolveu Bolsonaro por todos os crimes denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

Chamou a atenção de especialistas o entendimento de Fux neste caso, já que ele acompanhou o ministro Alexandre de Moraes ao condenar, em outro julgamento, mais de 600 réus pelos ataques de 8 de janeiro.

“Ele é o juiz que rejeitou mais de 99% dos habeas corpus de janeiro a março deste ano. Por isso, seu voto ontem foi muito surpreendente para toda a comunidade jurídica, uma vez que também se utilizou de juristas garantistas para embasar seu posicionamento”, disse Maíra Fernandes, advogada e professora da FGV Direito Rio.

Fux argumentou que não há prova sobre a formação de uma organização criminosa liderada por Bolsonaro que tentou abolir o Estado democrático de direito com um golpe de Estado.

Ele entendeu que o ex-presidente é inocente em relação a todos os crimes, incluindo liderar organização criminosa armada, dano qualificado contra o patrimônio da União, deterioração de patrimônio tombado, golpe de Estado e abolição violenta de Estado Democrático de Direito.

Ele também apontou o que entendeu como falhas no processo, como a incompetência do STF em julgar um ex-presidente e um “tsunami de dados”, que não teria permitido às defesas acessar todos os documentos em tempo hábil.

“De todas as argumentações, essa talvez seja uma das mais relevantes por parte da defesa. São muitos terabytes de informações”, avalia Juliana Bertholdi, advogada criminalista e professora da pós-graduação da PUC-PR.

Fux argumentou:

  • que atos preparatórios, aqueles realizados antes da consumação de um crime, “escapam, em regra, a punição da lei penal” e que “ninguém pode ser punido pela cogitação”;
  • que Bolsonaro não poderia ter dado um autogolpe, já que ele era o mandatário quando os crimes começaram, segundo a acusação;
  • que o crime de golpe de Estado pressupõe coordernação coletiva e meios concretos de execução, além de exigir deposição de governo;
  • que declarações “infelizes” ou “irresignação” de políticos não podem ser classificadas como tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito;
  • a competência do Supremo para julgar a ação contra Bolsonaro. De acordo com ele, os réus não têm foro privilegiado — pois já haviam deixado seus cargos no momento da denúncia — e não deveriam, portanto, ser julgados pelo STF.

Além de Bolsonaro, Fux também pediu a absolvição do almirante da Marinha Almir Garnier, mas votou pela condenação do ex-ajudante de ordens da Presidência, Mauro Cid, pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado de direito.

Com o voto de Fux, o placar pela condenação de Bolsonaro está em 2×1, com as manifestações de Alexandre de Moraes e Flávio Dino na terça (9/9). Faltam ainda votar Cármen Lúcia e Cristiano Zanin na Primeira Turma do STF, que julga o caso.

Opinião do ministro mudou?

Em 2023, Fux havia votado de outra forma na condenação do primeiro dos réus julgados pela invasão e depredação dos prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro.

O paulista Aécio Lúcio Costa Pereira, de 51 anos, foi condenado a 17 anos de prisão por 5 crimes: dano qualificado, deterioração do patrimônio tombado, associação criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e tentativa de golpe de Estado.

O tempo de cadeia foi proposto por Moraes, relator do caso, e o voto foi seguido por Fux à época.

Naquele momento, Fux entendeu que o STF era competente para julgar o caso. Agora, avaliou que Bolsonaro não tem foro privilegiado pois não ocupa mais o cargo e, portanto, a competência é da Justiça comum.

“O ministro Luiz Fux se contradisse ao entender que o STF não é competente em julgar os oito réus do núcleo principal da trama golpista”, avalia a advogada criminalista e professora na FGV Direito Rio Maíra Fernandes.

Ela ressalta que o julgamento de Bolsonaro e demais réus está acontecendo no STF não apenas por ter o ex-presidente como réu, mas porque entendeu-se que este julgamento é conexo com outros processos julgados pela corte, inclusive o dos atos de 8 de janeiro.

Outro ponto, lembra Fernandes, é que foi firmado o entendimento de que a corte mantém competência para julgar autoridades por crimes relacionados ao exercício do cargo, ainda que afastadas da função.

“Naqueles processos, o ministro Fux reconheceu a competência do STF para processar e julgar os que participaram do ato de 8 de janeiro, ainda que muitos não tivessem prerrogativa de foro.”

Para o ministro, “a prerrogativa de foro deixa de existir quando os cargos foram encerrados antes da ação [penal]”. E explicou que, como os réus não ocupavam mais os cargos públicos no momento em que o processo foi iniciado, o Supremo não teria competência para julgá-los.

“Chama a atenção, é claro, que o ministro Luiz Fux não tenha trazido essa preliminar com relação à prerrogativa de foro, que foi a tônica principal do início do julgamento, quando do julgamento dos demais réus com relação a 8 de janeiro. Essa questão poderia ter sido levantada naqueles julgamentos. Evidente que são questões muito próximas, que há um atravessamento fático, tanto no 8 de janeiro quanto no julgamento do que chamam de núcleo da trama golpista”, diz Bertholdi, da PUC-RS.

A maioria dos ministros da Primeira Turma do STF discordou de Fux quando esse tema foi debatido na chegada do processo ao colegiado, em março deste ano, quando ele ficou isolado por 4 votos a 1.

Para eles, a prerrogativa de foro continua para Bolsonaro porque os crimes imputados teriam sido cometidos quando ele ainda era presidente e teriam ligação direta com a função que ele exercia.

Essa diferença nas votações em 2023 e agora causou crítica de parlamentares governistas.

Um deles, o deputado federal Lindbergh Farias (PT), afirmou que “nunca viu tanta contradição, tanta incoerência. Ele votou pela condenação de mais de 400 pessoas por esses mesmos crimes. Aquelas pessoas que participaram do 8 de janeiro. Agora na hora de julgar os cabeças, Jair Bolsonaro, muda tudo”, disse, em um vídeo compartilhado pelo perfil do partido no X.

O advogado de Bolsonaro, Celso Vilardi, celebrou a posição do ministro e disse que seu voto “lavou a alma”.

Durante seu voto, Fux lembrou dos atos antidemocráticos de janeiro de 2023, mas disse que não é possível culpar Bolsonaro pelos ataques.

“Não se pode aceitar a pretensão acusatória de imputar ao réu a responsabilidade pelos crimes praticados por terceiros no fatídico 8 de janeiro de 2023 como decorrência de discurso e entrevistas ao longo do mandato.”

‘Voto mais garantista’ de Fux?

Juliana Bertholdi, advogada criminalista e professora da PUC-PR, diz que Luiz Fux é conhecido por um perfil bastante rígido.

“Se fôssemos colocar uma escala entre punitivista e garantista, ele certamente estaria ali na cota mais punitivista do STF, concebendo pouquíssimos habeas corpus. Há muitos dados sobre isso. Essa postura garantista que foi adotada no julgamento do núcleo da trama golpista chama bastante a atenção.”

Ela diz que, entre advogados, já circula, em tom de brincadeira, a ideia de andar com esse voto de Fux “embaixo do braço.”

E avalia que esta decisão pode ter impacto em outras.

“É um precedente importante com relação a questões de competência, nulidade de provas e uma série de outras questões.”

Um exemplo concreto, avalia, é a compreensão do ministro sobre organização criminosa armada.

“Poderia impactar julgamentos, inclusive, de organizações criminosas já estabelecidas, como PCC, Comando Vermelho, utilizar esse argumento em outros julgamentos.”

Para a especialista, “talvez esse tenha sido o voto mais garantista da história” do ministro.

Maira Fernandes, da FGV Direito Rio, diz que “essa mudança não encontra explicação clara”.

“O contraste entre sua atuação nos casos dos executores do 8 de janeiro e agora em relação aos supostos mentores intelectuais revela um movimento inesperado, que rompe com a previsibilidade de seu histórico jurisprudencial”, disse.